Toda A Mente É Danada (4)
Quando acordei a casa tinha desaparecido, mas não dei muita importância ao facto e virei-me para o outro lado. A ausência de Phoebe é que me despertou por completo.
Conseguia ver ainda, mas muito mal, e o corpo parecia tomado por um torpor que cheirava a morte. Veneno! Envenenaram-me! Tentei mover o braço direito e a muito custo consegui introduzir dois dedos na garganta. Os espasmos violentos esvaziaram o meu estômago e a relva curta mudou de cor à minha volta. Sim, era relva, estava num jardim bem tratado e bem iluminado naquela noite sem lua. Sentia-se melhor agora, apesar de continuar tonto e completamente desorientado. Merda, sujara todos os seus anéis de vomitado!
Os meus olhos abriram-se subitamente e compreendi tudo nesse instante. Acordei Phoebe com um empurrão violento e saltei da cama.
- O que foi, Elder? A casa está a arder?
- Pior, tentaram envenenar Vincent.
- Tentaram envenenar...? Mas como é que sabes!?
- Acabei de o salvar. Depressa, veste-te e vem comigo. Onde disse ele que morava?
Os pneus guincharam com o esforço da travagem. Saltei pela porta e corri o mais que pude pelo relvado bem tratado. O corpo de Vincent estava numa posição estranha, nem sentado nem deitado, mas parecia vivo.
- Vincent! – gritei-lhe o nome várias vezes aos ouvidos enquanto lhe dava pequenas estaladas.
- Vamos levá-lo ao hospital. – Phoebe ajudou-me a carregar o corpo maciço para o automóvel.
No hospital a única coisa que obedecia a modas era a indumentária do pessoal, tudo o resto era bem moderno e funcional. Apaguei o cigarro distraidamente no chão da sala de espera. Fumar era um hábito que me assaltava esporadicamente em momentos de tensão.
Pensei melhor no estranho acontecimento. A transferência acontecera novamente mas, agora sem o terceiro elo da cadeia, ela fora directa entre mim e Vincent. Não fazia sentido que esta última transferência fosse premeditada pelo oculto assassino. Se ele pretendia eliminar-nos não faria nada que pudesse salvar-nos a vida, e fora precisamente isso que acontecera.
A única conclusão a tirar era a de que a transferência tinha sido acidental, provocada apenas pelo pânico ou pelo medo induzidos pela nossa situação.
- Foram os senhores que trouxeram Mr. Greenaway?
- Sim. Como é que ele está?
- Agora está bem, mas teve uma grave intoxicação alimentar. Devia ter mais cuidado com o que come. – o médico esboçou um sorriso de circunstância – Ele quer falar consigo.
Segui o médico pelos corredores assépticos até ao quarto de Vincent. Fora a palidez do rosto e o cansaço que se adivinhava nos olhos parecia estar bem.
- Não se demore muito, está bem? Mr. Greenaway precisa de repouso.
Acerquei-me mais da cama.
- Você tem de me tirar daqui! – a mão dele agarrou-me o braço esquerdo.
- Assim que lhe derem alta.
- Não, você não está a perceber: tem de me tirar daqui já!
- Você está exausto, não ouviu o médico?
- Aqui corro perigo de vida. Ele, seja quem for, tentará matar-me outra vez e pressinto que desta vez não falhará... E você também corre perigo, Pramitt! Só desembaraçando-se de nós os dois o assassino ficará seguro.
Só pensei um par de segundos antes de me decidir. Abri o roupeiro e tirei as roupas de Vincent. Estavam sujas mas no momento isso não interessava.
- Tome e vista-se depressa.
- Aqui estão as suas roupas. – Phoebe entrou arquejante na sala carregando duas malas demasiado cheias – Estaremos seguros aqui, Elder?
- Não.
- Temos de ir para qualquer sítio onde possamos passar despercebidos, onde ele não nos encontre. – a voz de Vincent era fraca ainda, embora o seu aspecto geral tivesse melhorado com as horas de sono que tivera em minha casa. Ele afirmara que tinha visto o prazo de validade do jantar congelado que quase lhe provocara a morte e que este não tinha sido ultrapassado. Comprara-o no dia anterior num supermercado, logo o assassino só poderia ter colocado o veneno após a compra, já na sua casa.
- Estou a lembrar-me que a Cindy...
- A Cindy o quê?
- A Cindy tem um apartamento que só usa para festas, pode perfeitamente emprestá-lo por uns dias. Vou contactá-la.
- Não!
- O quê?! Estás a ficar louco, Elder Pramitt?
- Pelo holofone não! Tenta encontrá-la no emprego. Eu junto as coisas de que precisaremos. Você Vincent, fique quieto e não se aproxime das janelas.
Subi ao andar de cima e comecei a juntar algumas roupas e outras coisas igualmente necessárias. Cindy não trabalhava longe.
- Para onde é que vais? O apartamento de Cindy é na cidade, não nas montanhas!
Vincent respondeu antes de Elder:
- Podemos ser seguidos. Na estrada da montanha veremos isso.
O meu espírito não tinha contornos policiais. Não me considero estúpida, mas confesso que não me tinha ocorrido semelhante situação.
A estrada serpenteava pela floresta e parecia interminável. Era um sítio perfeito para pensar na minha vida, embora o momento não fosse o mais propício.
Vivia com Elder há cinco anos, quase desde que o conhecera numa festa, uma das muitas a que Elder gostava de comparecer. Nada a atraíra nele mas tinham acabado no apartamento de Elder a fazer amor. Ele nessa altura só tinha um apartamento, pequeno e desarrumado, e uma grande vontade de viver depressa. Tinham optado por um contrato anual renovável, que tinham oficializado num dos terminais multi-uso que ornamentavam profusamente todos os locais públicos. Apesar das birras e das zangas nenhum deles, naqueles cinco anos, tinha falado em quebrar o contrato. Devia ser amor. Phoebe largou os pensamentos e olhou para a estrada deserta atrás deles.
- Então? Não vejo ninguém atrás de nós. – encarei Vincent e depois Elder e tentei gracejar – Só se o nosso perseguidor for invisível!
Eles não acharam graça. Elder olhou novamente para o retrovisor e depois concentrou-se na estrada à frente. Sim, até agora o assassino parecera invisível.
Houve quem, perante a confusão das centenas de religiões, optasse pelo ateísmo ou, pelo menos, por uma digna ausência de interesse pelo assunto. Houve quem, perante a mesma confusão, se sentisse tentado a juntar o caos numa única coisa.
O padre da Última Igreja pousou o cálice no altar coberto de flores e proferiu uma frase em antigo indiano. Disse mais qualquer coisa em latim e terminou a missa. Ao descer do altar fez-nos sinal para o seguirmos. Na sacristia o cheiro a incenso não era tão forte.
Observei o padre enquanto ele tirava o pequeno chapéu judaico e despia as vestes de sacerdote cristão. Apesar de já ser idoso era um homem forte, e o cabelo totalmente grisalho apenas reforçava a impressão de uma força digna que dele emanava. Eu não sou religioso e Elder muito menos, encontrávamo-nos ali pela simples razão do padre Serge Humbel ser o confessor de Walter Scherer.
- Podemos então começar. – disse ele enquanto se sentava – Sentem-se, por favor. Qual é então o assunto? Vocês mencionaram o nome de Walter Scherer...
- Ele era religioso e como o senhor era...
- Religioso, o Walter!? – o padre riu-se – De maneira nenhuma! Ele usava-me como depósito de preocupações, falar comigo aliviava-o das tarefas bicudas e dos problemas mais renitentes. Nem sequer era o seu confessor, ele nunca me pediu segredo do que me disse.
- Ainda bem... – as palavras saíram como um desabafo da boca de Elder.
- Como?!
- Desculpe padre, mas para as perguntas que lhe queremos fazer é melhor que seja assim.
O padre aceitou a minha explicação e dispôs-se a ouvir-nos. Quem falou primeiro foi Elder.
- Padre, por muito estranha que possa parecer a pergunta depois do que aconteceu, Mr. Scherer temia pela sua vida nestes últimos tempos? Mostrava-se preocupado com alguma coisa ou com alguém? – o padre pensou um pouco antes de responder.
- Sim.
A resposta ficou-se laconicamente pela afirmação solitária.
- Desculpe padre, mas não pode dar-nos pormenores sobre esse receio? – insisti.
- Ele não me contava tudo... Disse-me apenas que alguém poderoso teria muita conveniência em vê-lo desaparecer, mais nada. Nem nomes, nem os motivos pelos quais essa pessoa o desejaria eliminar. O Walter só me contava o que queria...
Conversámos com o padre mais algum tempo, tentando obter qualquer informação que nos fosse útil. Além de uns quantos hábitos de Walter Scherer e de outros factos que não possuíam relevância, pouco mais obtivemos. Apenas os nomes de dois ou três amigos e de alguns subalternos. O nosso problema era que quanto mais nos aproximássemos da vida de Walter Scherer, maiores riscos correríamos. O criminoso devia andar por perto... Era um jogo de rato e de gato e eu sentia-me demasiado rato para estar tranquilo.
A vantagem de Vincent ser polícia era a de que obtínhamos certas coisas com muito maior facilidade. As chapas de matrícula falsas, por exemplo.
Vincent cortara o bigode e eu deixara crescer uma barba rala, e ambos fizéramos dos óculos escuros uma peça de vestuário indispensável. Até agora tinha resultado, não fôramos localizados.
- É aqui. – Vincent apontou para o pequeno edifício de dois andares à nossa frente, coberto de hera e cercado por um jardim pequeno mas arranjado com gosto. Ali vivia Thomas Thornbee, um dos nomes que o padre Serge nos dera. Trabalhava com Scherer à longo tempo, podendo também ser incluído na lista de amigos do ASCJIM. Era o seu assistente mais directo e também conselheiro e confidente, a pessoa ideal para conhecer os mistérios da vida de Walter Scherer e, possivelmente, o nome do seu inimigo.
Quem abriu a porta foi uma senhora cuja indumentária não enganava: era idêntica à utilizada pelas enfermeiras nos meados do século XX. A sua presença não era um bom augúrio.
- Sim?!
- Boa tarde, queríamos falar com Thomas Thornbee. O meu nome é Vincent Greenaway e este é... – ela interrompeu-o.
- Os senhores podem entrar mas duvido que consigam alguma coisa, Mr. Thornbee está doente, muito doente...
O quarto estava quente e abafado, e o homem deitado na cama com dossel tinha aspecto de moribundo.
- O que foi que lhe aconteceu? – indagou Vincent.
- Um acidente vascular grave. Nem sequer sabemos se nos entende, parece sempre tão alheado de tudo. Podem tentar falar com ele, mas não esperem nada.
- Desde quando está ele assim? – perguntei-lhe.
- Aconteceu no dia seguinte ao assassínio de Mr. Scherer, eles eram muito amigos. Descobriram-no no escritório, estava tudo revolvido, até a janela abriu com a aflição! Pobre Mr. Thornbee, tão boa pessoa...
A enfermeira saiu do quarto e deixou-nos com o moribundo. Talvez esta não seja a palavra mais correcta para descrever o estado de Thomas Thornbee; vegetal seria mais adequado...
- Mr. Thornbee, consegue ouvir-me? – não houve qualquer reacção – Somos amigos de Walter Scherer, percebe? – era apenas uma mentira inocente.
- Não acreditamos que Wilbur Teeling tivesse agido sozinho, queremos descobrir quem está por trás dele. Pode ajudar-nos?
- Nem sequer sabemos se ele nos está a ouvir. – disse para Vincent. Ele apenas encolheu os ombros.
O gemido de Thornbee captou-nos a atenção. Tentava desesperadamente articular qualquer coisa, mas apenas conseguia que a saliva lhe escorresse abundantemente da boca. Depois tentou mexer o braço direito. Tinha a mão enclavinhada, provavelmente desde que sofrera o ataque. Vincent avançou e agarrou a mão de Thornbee.
- Que raio quererá ele dizer? – o braço e a mão eram sacudidos por espasmos desconexos.
- Vincent, ele tem qualquer coisa nessa mão!!
Uma tentativa de sorriso pareceu querer aflorar ao rosto de Thornbee e o braço agitou-se mais. Vincent tentou abrir-lhe a mão, mas não conseguiu.
- Assim não vamos lá, Elder. Ele tem a mão fortemente fechada... Talvez tentando empurrar o que ele lá tem.
Fui buscar uma colher à pequena mesa onde repousavam os restos do almoço de Thornbee. Ainda estava suja de uma papa qualquer. Vincent introduziu o cabo na mão cerrada e empurrou.
- É qualquer coisa metálica!
- Sim, já está a sair, parece uma chave. Podes parar Vincent, já a posso puxar.
Era uma chave, uma pequena chave de cofre de depósitos do Banco Livveghart.
Thornbee estava calmo agora, depois de todo o esforço para nos dar a chave.
- Mr. Thornbee, a chave foi-lhe dada por Walter Scherer, não foi?
O braço agitou-se por momentos e o seu rosto pareceu dizer sim, depois voltou ao mutismo e a expressão vazia no rosto era um cumprimento de despedida.
A enfermeira fechou a porta atrás de nós. O sol da tarde batia em cheio nos óculos escuros que eu e Vincent usávamos.
- Bem, já temos algo para começar. Onde foi mesmo que deixámos o carro? – a explosão atirou-nos pelo ar como duas penas, no meio de um caos de fumo e destroços pulverizados. Ainda vi a parede despedaçada da casa de Thomas Thornbee. Depois ficou tudo negro...
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